Quem sou eu?
Essa pergunta me acompanhou por muito tempo.
Sou filha de uma mulher forte, nascida no Rio Grande do Sul, e de um pai ausente, um imigrante coreano. Ambos deixaram suas terras de origem para viver em São Paulo, onde eu e meus irmãos nascemos. Sou mestiça, com uma identidade moldada exclusivamente pela perspectiva brasileira.
Desde cedo, percebia que minha aparência era diferente da da minha mãe — ainda que, entre meus irmãos, eu fosse a mais parecida com ela. Meus traços asiáticos sempre pareceram destoar do ambiente ao meu redor, e uma sensação persistente de que algo faltava me acompanhava. A ausência do meu pai se manifestou de diversas maneiras, mas talvez a mais profunda tenha sido essa dificuldade em me sentir pertencente.
Minha mãe é branca, de cabelos pretos e ondulados — hoje grisalhos — e toda a minha família materna segue esse mesmo padrão. Já eu e meus irmãos, fruto do primeiro casamento dela, carregamos traços marcadamente asiáticos. Talvez não fosse apenas a aparência física que causava o estranhamento, mas também o fato de minha mãe ter sido uma mãe solo durante tanto tempo, enfrentando dificuldades financeiras e, mais tarde, tendo outro filho de um segundo relacionamento. Tudo isso, misturado, me fazia sentir um tanto deslocada.
Tenho lembranças muito vívidas da infância. Sempre fui curiosa, com uma imaginação fértil. Desenhava vilarejos da China feudal, acreditando que já havia estado lá. Amava kung fu e, na terceira série, aprendi a comer com “palitinhos” só observando meu colega Hon I Chen. Como minha mãe não gostava de comidas asiáticas, improvisava: comia arroz e feijão com palitos de churrasco — grão por grão, com toda paciência do mundo.
Por não ter nenhuma referência coreana em casa, e talvez também por mágoa de um país que simbolizava a ausência do meu pai, minhas influências asiáticas acabaram vindo da China e do Japão. Na adolescência, decidi que seguiria carreira na gastronomia — uma escolha que agradava minha mãe. Aprendi a cozinhar com ela, o que também me deu autonomia para conseguir empregos com mais facilidade. Estudava a culinária de diversos países, mas recusava qualquer aproximação com a comida coreana. Por anos, resisti a qualquer coisa que me remetesse à dor do abandono.
Mas a vida muda, às vezes de forma inesperada.
Após muita insistência do meu companheiro, experimentei, pela primeira vez, a comida coreana. E, meus amigos, foi como abrir um portal. Provei kimchi, bibimbap, os famosos banchan, o churrasco coreano (tão diferente do gaúcho lá de casa, sempre preparado pela minha mãe, e que também é uma delícia). Fiquei espantada: como vivi 25 anos sem conhecer nada daquilo? Aos poucos, comecei a me permitir. Estudei coreano por dois meses no YouTube, aprendi o alfabeto, algumas palavras. Visitei restaurantes, com cautela — como quem remove um curativo, devagar, respeitando o tempo da cicatrização.
Depois de 9 anos na gastronomia, decidi mudar. Passei a me dedicar à cerâmica — um caminho ainda incerto naquele momento. Um dia, me pediram para criar uma peça com temática coreana. Sem muitas referências, comecei a pesquisar sobre a história e mitologia do país. Foi então que me deparei com os Jangseung, esculturas de madeira ou pedra usadas no xamanismo coreano para espantar maus espíritos e trazer fartura. Senti que elas me encontraram — e, a partir daí, algo em mim se transformou. A cura veio com força, quase como um rompante. Não consegui mais conter a vontade de falar sobre isso
